sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Pessoal

  Fila para entrar. Banheiro imundo. Mulheres. Jovens e velhas. Todas com sacolas de plástico ao lado das pernas que repousam no chão enquanto esperam. Longo dia. Algumas conversam, para matar o tempo. O chão seco. Sol e bastante claridade na manhã daquele domingo. Dia de visita. Em quase todas, o rosto sofrido da pobreza. Uma ou duas bem vestidas. Ali, eram todas iguais na dor e programa de domingo. Às vezes se entreolhavam. Não sorriam. Ainda assim usavam de cortesia discreta, expressada com a inclinação do rosto de cima para baixo, que significava, mais ou menos, eu lembro de ter te visto aqui na última vez.

  Uma tendinha em frente à fila e do lado de fora vendia alguns quitutes e recebia alguns reais para guardar pertences. A senhora da tenda era simpática e estava ali a trabalho. Dentro, tampouco sorriam. Olhares atentos de fiscais que remexiam as quentinhas com uma faca que, vira e mexe limpavam em um guardanapo. Furavam as frutas, abriam a tampa da margarina, abriam os pacotes de biscoito. Abriam o refrigerante e cheiravam. Era sacola para lá e para cá, e as pessoas que passavam por ali falavam o mínimo necessário.
Atrás, um guarda com sua arma imensa, pesada e negra, apontada para baixo, tentava disfarçar o desânimo. Eu procurava sorrir, e mostrava que não entendia nada dos códigos do lugar onde estava.

  Hora da revista íntima. Tirar a roupa, colocar em cima da mesa cinza, ficar nua na frente de outras duas mulheres, encostar na quina da parede e agachar. Fazer força. Força para fora. A fiscal tentava fazer o momento desagradável ser o mais rápido e impessoal possível. Com a fisionomia séria, dava ordens. As mulheres, tratadas como se tivessem cometido algum crime, não como se fossem suspeitas de algum. Deve ser um trabalho e tanto procurar por drogas no cabelo e vagina de mulheres o dia todo. Depois da revista, a espera para que abram as portas e nos levem de um lugar para outro. Tudo cinza no caminho. Nenhuma árvore, nada. Nada. Secura. Paisagem morta. Ressecada. Inerte. O céu estava menos azul do que de costume. Azul-pastel. Dos guardas eu só lembro a apreensão. Estado de alerta o tempo todo. Arma na mão pronta para atirar. Uniforme verde-morto. Apagados. Depois de me sentir em um sonho por alguns minutos, olhava para um lado e via o chão de cimento cinza e a porta fechada com grades. Do outro lado via a mesma coisa, como quem descobre pela primeira vez que os 2 meninos numa sala em lados opostos são gêmeos. Alguém escoltado abriu a porta. Lá dentro, vejo ele vindo. Não me lembro onde exatamente estava quando o vi pela primeira vez. Só sei que ele continuava lindo. Alto, bem barbeado, os cabelos pretos bem penteados. Vestindo uma blusa de malha e uma bermuda, sorriu. Tentei achar sinais de sofrimento em seu rosto, eu vinha me preparando para isso. Mas era o mesmo sorriso e olhar gaiatos de sempre. Como seria possível que ele não tivesse mudado nada? Quando entrei, os outros todos abaixaram a cabeça. O respeito me impressionou. Depois fiquei sabendo que eles têm suas regras, como em todo lugar. Conversamos, uma conversa que pela primeira vez não fluiu no tom de voz natural de sempre. Pisando em ovos, comemos as quentinhas. Quando eu comecei a contar histórias, pediu que eu falasse baixo. Embora não parecesse, as grades têm ouvidos.

   Uma ou duas meninas beijam os namorados. Uma entrou em uma cela, que era coberta por cangas que mantinham a privacidade dos pombinhos. Eram mães com filhos, irmãs, namoradas. Todas vindas de longe para passar o domingo com os seus. Tantas mulheres. Tantas histórias. Tanta fidelidade. Perguntei sobre o dia em que é permitido a visita masculina. Parece que são poucos os que vêm. Muito poucos. Muito raro. Saí de lá olhando de uma maneira especial para a raça feminina. Porque será que são assim?

Escrito por Marcela Orsini.

17 comentários:

  1. Gostei muito de seu texto!! Muito intenso!
    Foi algo que voce passou?

    Eu sinceramente não entendo a raca feminina!! ... Mas eu posso dizer que eu não iria visitar ninguém na prisão. Eu tenho uma tia que seu marido está preso, e há 4 anos ela vai todos os finais de semana visitá-lo. Eu sinceramente não entendo tamanha devocão!

    Será falta de amor-próprio, ou talvez amor demais?

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  2. Obrigada Danielle. Sobre sua tia, acho que é generosidade e fidelidade. As mulheres são mesmo excepcionais.

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  3. Como escreveu Danielle, é um texto muito intenso e também triste. Gostei!

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  4. Tem mais ou menos um mês eu acho, vi um documentario de como muelheres de presidiarios vivem do lado de fora enquanto eles estao la dentro, sabe que o documentario era em inglës com legenda Norueguesa(eu nao falo inglês e tô ralando no norueguês, entendo pouco) mas chorei do inicio ao fim, eu visitaria sem duvida, caso precisasse um dia, nao por conta do documentario sabe, mas por que minha indole me levaria a continuar amando quem eu amo, mesmo que ele fosse preso(espero Deus que ele nao seja) esse documentario mostrava inclusive presidios Brasileiros, e fazia um paralelo com outros presidios do mundo, chorei demais ao ver uma mulher que se maquiou sozinha num quarto frio, vestiu o vestido de noiva, pegou seu bolinho na mao, e foi casar na cadeia, ela de um lado do vidro o noido do outro, chorei tanto...no fim ela deu o bolo pra ele e voltou pra casa sozinha, imaginei...Meu Deus que triste, casar e nao acordar com o marido no dia seguinte, casar e nao ter vida nova com o homem que se ama, por que ele está pagando uma divida que pode levar anos e mais anos....Eh anulacao pessoal demais, e muito amor ao proximo, eu só agradeci por ser 100% apaixonada por alguém que está livre. Adorei seu texto!! Lindo e muito bem colocado, bjao Bom domingo amanha, por agora cë ja deve ta mimindo rsrs.

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    1. Wilqui, obrigada pela visita! Se formos parar pra pensar nós temos sorte por muitas coisas serem como são na nossa vida e nem nos damos conta, né? São tantas outras realidades ao nosso redor e a gente nem imagina que só nos resta mesmo sermos gratas pelas coisas boas que temos. Fica olhando aí pela janela porque te mandei um beijo partindo aqui de Oslo, daqui a pouco ele chega por aí :)

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  5. Belissimo texto, vc possui uma capacidade incrivel de captar sentimentos e emoçoes somente com o olhar e transmiti-las fielmente.
    Um viva para essas mulheres guerreiras que se submetem a esse tipo de situaçao por amor, lealdade, compaixao, ou quaisquer outros motivos.

    Beijos!!
    dasaxoniaabaviera.blogspot.com

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    1. Obrigada Ká, concordo com você que essas mulheres são muito guerreiras e merecem todo o nosso respeito por isso. Mais uma vez obrigada pelos elogios ao texto, é bom saber que consegui transmitir bem sobre uma realidade que está fora do cotidiano da maioria das pessoas.

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  6. Pois é Marcela,seu texto está muito bem escrito!muito profundo;me fez imaginar a dor daquelas mulheres ao ver seus entes queridos.Imaginei quanta culpa uma mãe deve sentir ao ver seu filho preso,quanta dor!devem se perguntar onde erraram?porque o filho fez isso?a maior dor que uma mãe pode sentir é a culpa.Nós mulheres fazemos de tudo para acertarmos,e a resposta de uma boa criação ,vem no resultado quando nossos filhos crescem.O que muitas não sabem é que sem Jesus,sem ensinarmos o temor a Deus não conseguimos acertar.Agradeço a Deus por ver meus filhos bem sucedidos,sei que se não fosse Deus na minha vida eu não teria conseguido.Parabéns Marcela!

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    1. Lindo o seu comentário, obrigada! Você que é mãe pode entender ainda mais do que eu que ainda não sou.

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    1. Oi Cristina, qual sua base para esta afirmacão? Nunca ouvi falar disso, vou pesquisar mais na internet sobre o assunto.
      Acho que generalizar o motivo pelo qual as pessoas vão parar na cadeia é equivocado.
      Existem muitas histórias e motivos diferentes para alguém ir parar na cadeia. Existem pessoas, por exemplo, que vão presas por estar em um lugar onde há drogas em grande quantidade embora as drogas não pertencam a elas. E até que elas consigam provar que são inocentes, e acredite, pode levar muito tempo, elas ficam presas. Eu sei que é um absurdo e um desperdício de espaco e dinheiro público, mas essa na minha opinião é uma das falhas do sistema. Além de muitas outras, como tratar as pessoas que cometeram um crime como seres inferiores e dignos de menos respeito. Na realidade, os maiores bandidos estão soltos, e a cadeia no Brasil é para os pobres. Acredite, infelizmente é verdade.

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  8. Me emocionei.. Espero nunca ter que passar por isso kk..
    As pessoas as vezes nao entendem, mas nos mulheres temos o defeito/qualidade de amar demais. Amar até mesmo os erros alheios..

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    1. Feliz em ter te tocado, Amanda. É verdade, nós mulheres nos doamos e quando amamos, amamos de verdade!

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